Edição extra? Oi?
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Essa newsletter exclusiva será mensal e só pra quem apoia financeiramente o projeto. Então, se você está lendo, muito obrigado. De verdade!
Hoje eu trago dois textos meus que foram autocensurados.
“A outra reunião” é de 2020. Revela o papo que aconteceu depois daquela famosa reunião governamental que vazou na internet. Nessa época, eu trabalhava em um serviço diplomático e o necessário “devoir de resérve” me dissuadiu de seguir com a publicação. Você vai entender por quê. Então esta é uma crônica totalmente inédita.
Já “Vem chegando o verão” foi escrito em 2007, pouco depois de eu me mudar pra França. Chegou a ser publicado no meu antigo blog Chéri à Paris (que depois virou livro). Apesar dos evidentes cuidados que tive com meus anfitriões, alguns amigos franceses não gostaram muito da piada e não tive escolha a não ser apagar o texto. Acho que hoje já dá pra trazê-lo de volta (ei, mas o que é isso mon ami?, tira essa guilhotina pra lá, calma…)
Espero que gostem. Até o mês que vem!
A outra reunião
Assim que foram divulgados os vídeos daquela - aquela mesma - reunião ministerial, parece que o presidente juntou o núcleo mais próximo para uma outra, de emergência.
(Presidente): Tá todo mundo aí? O ministro da moeda, o das árvores, a das meninas de rosa, o dos livros que odeia índio…
(Filhuxo): Índio? Onde?
(Presidente): Calma, Filhuxo, tô só fazendo a chamada da tropa...
(Ministro fardado): Tropa? Já é pra botar na rua?
(Presidente): Ainda não, ainda não, povo mais apressado. Vamos ver isso mais tarde, tá ok? Mas tô vendo que tá faltando gente. Cadê o astrólogo, que ainda não entrou por vídeo? Ah, lá vem ele. Diga aí, meu guru, dê sua mensagem de hoje.
(Astrólogo): Cu!
(Presidente): Que sabedoria… Esse é dos meus. Sempre fiel, apesar das voltas que o mundo dá.
(Astrólogo): Presidente, em primeiro lugar, o mundo não dá voltas. Em segunda, tenho uma declaração importante a fazer.
(Presidente): Diga.
(Astrólogo): Pum! Fui.
(Filhuxo): Que cabeça. Ele usa não mascaradamente um discurso bonito que “eclode” na volta dos interesses de todos e vai para onde eles menos imaginam, isso nem a imprensa lixo é capaz de impedir!
(Presidente): É isso aí. Gosto muito desse astrólogo, fala o que pensa, como eu. Aproveitando o gancho do que ele disse, anota aí, ô do livro, que é pra mandar embora a secretária do pum do palhaço. Agora todo mundo vai ter que alinhar o discurso ao meu, sem exceção.
(Ministro dos livros que odeia índios) - Com quantos “s” se escreve essa palavra?
(Presidente) - Sei lá. Coloca aí: “SS”, duas vezes. Mudando de assunto, tô sentindo falta do ministro da cloroquina. Cadê?
(Ministra cor de rosa): Você mandou embora, presidente, de novo. Esse, como o outro, não usava ternos azuis. Mereceram.
(Presidente): Droga, verdade, tinha esquecido. É que esse último se fazia tão bem de morto que nem percebi sua ausência. Qual o nome dele mesmo? Reich?
(Todos juntos, levantando a mão direita): Heil!
(Presidente): Epa, peraí, cuidado com isso, senão depois acabam acusando a gente, tá ok?
(Ministro da árvore): Mas acusando de quê? Só levantamos a mão. E a minha tá limpa, lavei no tanque.
(Ministro fardado): Tanque? Tá na hora? Mando sair?
(Presidente): Calma! Tô vendo que tá todo mundo tenso. Eu entendo, sei que aquele ministro da justiça nos traiu e começou essa confusão toda que estamos vendo aí. Logo nós, que demos tudo pra ele, acolhimento, munição, liberdade pra perseguir injustamente quem ele quisesse. O que mais ele poderia desejar, meu Deus?
(Filhuxo): Não se preocupe, vou mandar os robôs pra cima. Ele vai ver que essa tática malandra de ficar com cara de besta em conluio com aqueles que trabalham para que tudo continue na mesma é inaceitável para todos que seguem “insatisfeitos” com o andamento das coisas que a imprensa lixo imprime em papéis e não valem as letras quiçá os meios.
(Presidente): Filhuxo, entendi nada, tá ok? Mas adorei o texto. Bate e publica.
(Ministro fardado): Bater? Já pode começar?
Vem chegando o verão
Cheguei em Paris no inverno. Frio pacas, impossível escapar do ritual pra sair de casa: camisa, casaco, sobretudo, calça grossa, luva, cachecol, meias de lã, sapato fechado. Ou isso ou virar picolé de cabelo.
Na primeira semana é ótimo.
- Ah, que legal um inverno de verdade! Tão diferente do Brasil.
Na segunda semana você descobre outras maneiras de passar o tempo.
- Tudo bem que não dá pra sair. Vamos ficar em casa e tomar um vinho.
Da terceira semana em diante vira tortura.
- Quando vai acabar esse frio glacial, diabos?
E o pior é que ele não acaba. Ou melhor, acaba, mas demora. Enquanto isso, a solução é carregar quilos de vestimentas pra cima e pra baixo. E como todos os lugares têm aquecedores potentes, o processo fica meio maníaco-depressivo: sai de casa com frio e entulhado de casaco, entra no metrô com calor e fica só de camisa, sai do metrô congelado e veste tudo outra vez, entra num bar fervendo e faz um novo strip-tease.
Mas um dia o tempo esquenta e você deixa de ser um guarda-roupas ambulante. "Agora vai ficar bom", pensa.
Ilusão.
É bem verdade que é muito mais agradável pegar um sol nas idéias. Os parques ficam apinhados de gente fazendo piquenique. E as ruas, cheias, ficam mais bonitas. Mas na terra do perfume um simples desodorante parece ser artigo de luxo.
Se tem uma coisa que é democrática em Paris é o cê-cê, a sovaqueira, o cheiro de bode morto. Todos têm igual chance de feder, sejam franceses, paquistaneses, ingleses ou brasileiros, ricos ou pobres, homens ou mulheres. E nesses tempos de calor, uma simples viagem de metrô pode render um trauma.
Trem lotado, fiquei em pé, segurando a barra de ferro pra não cair. E aquele cheiro estranho no ar. Na estação seguinte, mais gente entrou, e o fedor piorou. Logo identifiquei a origem: um albino que falava espanhol e veio se acomodar perto de mim.
- Perdóname.
Chegou perto e quis dividir a mesma barra. Levantou o braço e revelou uma pizza tamanho família. O odor de tumba de faraó empesteava o ambiente. E o estranho era que só eu parecia perceber. Coloquei um papel com meu endereço no bolso da frente, caso perdesse a consciência, e dirigi todos os meus sentidos para um único objetivo: encontrar rapidamente um lugar longe do neto do Sivuca.
Parada seguinte, muita gente desceu. Vi que tinha duas cadeiras vagas. Ocupei rapidamente uma delas. Um casal bem vestido foi em direção à outra. A mulher sentou. Ela riu pra mim. Eu ri pra ela.
- Tô salvo.
Mas o futum ficou ainda pior. Suspeitei que fosse eu e disfarcei pra conferir se o desodorante tava em dia. Tava. Sem entender o que acontecia, tentei farejar a fonte de tamanha podridão.
Fui seguindo meu nariz e encontrei com espanto o nascedouro da fedentina. Era a minha vizinha. Eu não entendia como um ser humano podia cheirar tão mal. O marido dela devia ser desprovido de olfato. Não dava pra imaginar a possibilidade de dividir nem a mesma cidade com uma pessoa daquelas. Imagina a mesma cama.
Inebriado pelo odor, cheguei a cogitar cheirar meu próprio tênis, o que me parecia uma saída bem razoável. Ou então apertar o nariz com os dedos e conversar com ela um assunto qualquer. Mas a solução definitiva seria mergulhar a distinta dama em uma banheira e deixá-la por lá uns 3 dias. Ou 3 meses.
Felizmente não foi necessário. Eles logo avistaram duas cadeiras livres e foram felizes feder em outro canto.
Cheguei em casa e me meti embaixo do chuveiro. Fiquei lá o tempo suficiente para salvar meu corpo, já que a alma tinha sido impregnada por toda a eternidade.
Ao sair do banheiro, abri um calendário e fiz umas contas rápidas. Descobri com uma certa tristeza que ainda faltavam 150 dias para a chegada do inverno.
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